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terça-feira, 15 de março de 2011

Histórias de um passado em Moçambique - "Para o resto da minha vida..."

Corriam as férias grandes do meu segundo ano de Veterinária quando consegui, com muito esforço, reivindicar junto do então ex-Ministério do Ultramar, uma passagem aérea para ir a Moçambique ver os meus pais que já há cerca de três anos não via.

Também por volta dessa época, a correspondência amiga que travava com aquela que viria a ser minha mulher, bem indicava que o nosso namoro ia pegar e que, ver para crer…e falar, era tão imprescindível para o assumir do meu compromisso, que não havia no Terreiro do Paço fosse que Ministério fosse capaz de me reter por mais um dia em Lisboa.

Num subir e descer de escadas permanente naquele Ministério cansei-me a reclamar dos meus direitos que eram, nem mais nem menos, iguais aos dos que já tinham partido para junto dos seus. E à terceira folha de papel selado que assinei, consegui que me deferissem a pretensão. Nada tinha havido de mais justo!

As saudades eram enormes como se calcula, e a ânsia de me “mostrar” universitário, já mais homem, portanto, não o era menos. Estava desejoso de a todos os meus relatar, de viva voz, o meu dia a dia na capital, os meus êxitos e insucessos, as minhas dificuldades, a “seca” que tinha sido a anatomia, o quanto me faltava ainda de teoria para começar a praticar!...eu que nem sequer ainda uma injecção sabia dar!...

Entretanto, naqueles três anos que me separaram de Moçambique muitos hábitos se modificaram nas nossas vidas por razões da alteração da vida profissional do meu pai. Os dias passaram a ser a ser menos optimistas por força das circunstâncias e a angústia da distância e da ausência, cada vez mais nos faziam sentir o desejo do reencontro! Era fundamental que tal acontecesse!...e lá se consumou a viagem nesse 19 de Agosto de 56.

A chegada ao destino foi um episódio da minha vida que jamais esquecerei! A expectativa era grande e o desejo de me ver em terra…ainda maior!

Sobrevoava Nampula pela primeira vez. Um autêntico luxo para a época! Deliciei-me a ver lá de tão alto toda aquela geometria de casas e avenidas, todas elas ainda do meu tempo de escola…e que eu agora em conjunto revia numa perspectiva que estava nos meus planos de viagem a não perder! Cá em baixo, uma improvisada palhota servia de gare; e no meio de meia dúzia de carros e pessoas que lhe estavam por perto, foi fácil detectar os meus que me aguardavam.

Entre risos, beijos e abraços…a conversa perdeu sentido!...até porque a comoção nos rouba quase sempre as palavras que as lágrimas substituem, e ali naquele momento da chegada não era o melhor local para conversar.

…a caminho do Parrane!

Depressa nos instalámos no “carocha” e seguimos rumo a casa. Dali até ao destino iam umas boas duas centenas e meia de quilómetros que o nosso ameno diálogo muito ajudou a encurtar. Minha mãe deixava, disfarçadamente, cair uma lágrima de vez em quando, que não me passava despercebida. Mas à medida que nos íamos aproximando do local, onde, afinal, a vida deles voltara a recomeçar…percebi que a sua comoção não se remediava com disfarces: era a expectativa do momento da chegada a casa e o não saber como reagiria eu às novas mudanças que, entretanto, se tinham operado! Nova casa…novos hábitos…novos espaços. Como iria eu reagir àquela transformação radical?!...era, ao fim e ao cabo, essa angústia que lhe apertava a garganta e a razão de ser de tanta lágrima vertida. Mas depressa tudo isso passou quando, particularmente, minha mãe se apercebeu da alegria que eu senti quando entrei pela primeira vez naquela casa!...Senti-me nas minhas sete quintas, pois era com aquele estilo simples de casa rectangular, coberta a colmo, que eu sempre sonhara vir um dia a gozar o mato que foi sempre onde melhor me senti!...estava tudo no sítio…por maior que fosse a improvisação!....e tudo à mão de semear!

Pelas redondezas tínhamos o único vizinho a cerca de dois quilómetros dali, e a duzentos metros, a única estrada que nos ligava à urbe mais próxima, assim mesmo a trinta quilómetros da nossa casa.

Nestas circunstâncias, e para quem sabe o que era a vida no mato, os “ranchos” e as medicações mais comezinhas aviavam-se para o mês sempre que se ia à cidade! O arroz e as batatas eram tão imprescindíveis para a sobrevivência como a tintura e os anti-palúdicos para quem vivesse longe do mercado ou do hospital. Viver no mato era assim…com todos os seus encantos, mas também com todos os seus riscos!...e no Parrane…o mato estava ali!

…e para grandes males….grandes remédios!...

Nas circunstâncias em que a vida ali se desenrolava com os recursos que, diariamente se inventariavam para se prevenirem as falhas, era com a “prata da casa” com que, a maior parte das vezes, se resolviam as situações mais imprevisíveis, desde a limpeza de um carburador até à substituição de um cano numa parede! Daí que na ausência de uma assistência médica a que o isolamento nos votava…fosse a minha mãe a “responsável”, na medida do seu possível e gosto, por tudo o que na área curativa e preventiva à saúde dissesse respeito. Todos os dias engrossava a fila dos que junto dela procuravam o seu alívio!...”Prescrevia” e aviava, e em casa, no dia certo, e à hora exacta, lá estava junto ao copo de água do almoço, o comprimido da semana que era obrigatório deglutir para que, pelo menos, o paludismo não entrasse em casa. E o preceito era rigorosamente cumprido; somente o meu pai, por vezes, e por motivos de ausência, o desrespeitava, e como tal, um dia foi acometido de um ataque violento de febres. Renitente a tudo que fosse tomado em comprimidos, deliberou logo à partida que aquelas temperaturas altas só o deixariam em paz com uma injecção. Contra esta vontade nada havia a fazer! Só que a situação se agravou apesar de na nossa farmácia caseira nada faltasse para que tal desejo fosse satisfeito: é que voluntários para a ministrar não havia! Nem eu nem minha mãe sabíamos dar injecções e enfermeiros próximos também não existiam.

Meu pai argumentava, por razões que lhe pareciam óbvias, que eu estaria em condições de pôr em prática alguma da teoria que certamente já tinha adquirido nos meus dois primeiros anos de veterinária. Por mais que fossem as razões que lhe desse sobre a minha inaptidão para o efeito, a contra argumentação dele acabou por vencer e convencer-me a fazer-lhe a vontade.

Imaginem-se os cuidados de que me rodeei… e os receios em errar o “alvo”!!...

Cumpridas as regras básicas do traçado nadegueiro e colocada a agulha entre o polegar e o indicador da mão direita, desferi o golpe como melhor me pareceu ser o mais indicado. Meu pai gritou um “ai” lancinante ao sentir a agulha, pelo que me assustei e a retirei, de imediato.

-“Desculpe, se o magoei”! Disse-lhe eu.

-“Não foi nada, foi só para te assustar” disse rindo-se, para me tranquilizar, rematando como que a justificar-se:

-“À segunda tentativa já te sentes mais confiante, tenta lá outra vez!”

E repeti a acção. De facto com mais confiança em mim e dando a injecção já sem qualquer receio.

Meu pai levantou-se da cama e ajeitando a roupa, rematou a conversa:

-“Vês? Custou-te alguma coisa? naturalmente que não!...a primeira vez é sempre a primeira! só que esta sempre tem mais uma particularidade: é que nunca mais te vais esquecer pela vida fora que o primeiro “animal” que injectaste….foi o teu pai!”

Autor: José Joaquim Caldas Duque


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